quinta-feira, 17 de julho de 2008

O dia em que Júpiter entrou em Saturno

- Você gosta de estrelas?
- Gosto. Você também?
- Também. Você está olhando a lua?
- Quase cheia. Em virgem.
- Amanhã faz conjução com Júpiter.
- Com Saturno também.
- Eu não sei. Deve ser.
- É sim. Bom encontrar você.
- Também acho.

(Silêncio)

- Você gosta de Júpiter.
- Gosta. Na verdade "desejaria viver em Júpiter onde as almas são puras e a transa é outra".³
- Que é isso?
- Um poema de um menino que vai morrer.
- Como é que você sabe?
- Em fevereiro, ele vai se matar em fevereiro.
- Hein?

(Silêncio)

- Você tem um cigarro?
- Estou tentando parar de fumar.
- Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.
- Você tem uma coisa nas mãos agora.
- Eu?
- Eu.

(Silêncio)

- Como é que você sabe?
- O quê?
- Que o menino vai se matar.
- Sei muitas coisas. Algumas nem aconteceram ainda.
- Eu não sei nada.
- Te ensino a saber, não a sentir. Não sinto nada, já faz tempo.
- Eu só sinto, mas não sei o que sinto. Quando sei, não compreendo.
- Ninguém compreende.
- Às vezes sim. Eu te ensino.
- Difícil, morri em dezembro. Com cinco tiros nas costas. Você também.
- Também, depois saí do corpo. Você já saiu do corpo?

(Silêncio)

- Você tomou alguma coisa?
- O quê?
- Cocaína, morfina, codeína, mescalina, heroína, estenamina, pscilocibina, metedrina.
- Não tomei nada. Não tomo mais nada,
-Nem eu. Já tomei tudo.
- Tudo?
- Cogumelos têm parte com o diabo.
- O ópio aprefeiçoa o real.
- Agora quero ficar limpa. De corpo, de alma. Não quero sair do corpo.

(Silêncio)

- Acho que estou voltando. Usava saias coloridas, flores nos cabelos.
- Minha trança chegava até a cintura. As pulseiras cobriam os braços.
- Alguma coisa se perdeu.
- Onde fomos? Onde ficamos?
- Alguma coisa se encontrou.
- E aqueles guizos?
- E aquelas fitas?
- O sol já foi embora.
- A estrada escureceu. Mas navegamos.
- Sim. Onde está o norte?
- Localiza o Cruzeiro do Sul. Depois caminha na direção oposta.

(Silêncio)

- Você é de virgem?
- Sou. E você, de Capricórnio?
- Sou. Eu sabia.
- Eu sabia também.
- Combinamos: terra.
- Sim. Combinamos.

(Silêncio)

- Amanhã vou embora para Paris.
- Amanhã vou embora para Natal.
- Eu te mando um cartão de lá.
- Eu te mando um cartão de lá.
- No meu cartão vai ter uma pedra suspensa sobre o mar.
- No meu não vai ter pedra, só mar. E uma palmeira debruçada.

(Silêncio)

- Vou tomar chá de ayahuasca e ver você egípcia. Para ao meu lado, olhando de perfil.
- Vou tomar chá de datura e ver você tuaregue. Perdido no deserto, ofuscado pelo sol.
- Vamos nos ver?
- No teu chá. No meu chá.

(Silêncio)

- Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.
- Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.
- Vou te escrever carta e não mandar.
- Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.
- Vou ver Júpiter e me lembrar de você.
- Vou ver Saturno e me lembrar de você.
- Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.
- O tempo não existe.
- O tempo existe, sim, e devorA.
- Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?
- Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
- E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.

(Silêncio)

- Mas não seria natural.
- Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.
- Natural é encontrar. Natural é perder.
- Linhas paralelas se encontram no infinito.
- O infinito não acaba. O infinito é nunca.
- Ou sempre.

(Silêncio)

- Tudo isso é muito abstrato. Está tocando Kiss, kiss, kiss. Por que você não me convida para dormirmos juntos.
- Você quer dormir comigo?
- Não.
- Porque não é preciso?
- Porque não é preciso.

(Silêncio)

- Me beija.
- Te beijo.
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³ Do poema " Vazio na carne", de Henrique do Valle.
Trecho do conto "O dia em que Júpiter encontrou em Saturno" de Caio Fernando Abreu

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